domingo, 19 de fevereiro de 2012

Moitessier dobrando o cabo Horn - 3/5 - 19/2/2012



MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN

 estrofe 7


nunca vi o cruzeiro do sul tão alto nem tão nítido
vejo inclusive as duas nebulosas
prolongamento luminoso dos seus braços
à bombordo flutua a lua toda cheia
a boreste resplandece o clarão das geleiras antárticas
as bolas de fogo que já mencionei
avistam-se agora que a cerração se dissipou
a mais de cinqüenta braças de distância
são aglomerados de plâncton me diz meu consciente
são olhos de carnívoras lulas gigantes me sussurra minha imaginação febril
mas porque será que possuem tamanha claridade?
porque será que se apagam tão de repente?
mistérios, mistérios profundos
a mar é assim, sempre cheia desses mistérios insondáveis e profundos
que crescem de dimensão à noite
ora nos encantando, ora nos apavorando
é por isso que todos nós, marujos de alta mar
temos essa expressão mista no olhar
mescla de coragem, medo e encantamento
quem ama mulher bonita, inteligente, impetuosa e fatalmente infiel
tem essa mesma expressão desvairada e tensa de marujo de alta mar no olhar
basta olhar pro Otello da Desdêmona
basta olhar pro Don José da Carmem
basta olhar pro Bentinho da Capitú
todos três, Otello, Don José e Bentinho tem cara de marujo de alta mar, sem jamais ter afrontado a mar
minto, minto o mouro de Veneza conhecia  bem a mar
e Desdêmona não era, nunca foi infiel
pobre Otello atravessou a mar e afogou-se  na lagoa escura do ciúme
Machado, o grande Machado escreveu que Capitu tinha olhos de ressaca
e foi numa ressaca que Escobar perdeu a vida afogado
as vagas tornaram-se altas
ainda mais altas do que devem na realidade ser
pois que o clarão secante do luar realça-lhes o volume e a altura
eu deveria baixar o que sobrou da vela grande e tirar a bujarrona de cena
essas surfadas fantásticas que “Joshua” vem realizando na crista das ondas podem resultar em desastre


estrofe 8


são lindas
são emocionantes
são excitantes
mas como tudo que é lindo, emocionante e excitante são perigosas, pra não dizer perigosíssimas
aposto que a velocidade limite do casco já foi diversas vezes ultrapassada.
essas imensas vagas geladas mais parecem
labaredas de incêndio
e eu estou brincando com fogo, amigos
expondo-me demasiadamente ao perigo
sorvendo overdoses de adrenalina
eis-me viciado na droga mais alucinante do mundo
não é a cocaína, não é a heroína, não é a maconha, nem tampouco a nicotina
é a poderosa ADRENALINA
somos todos, nós aventureiros, nós marujos de alta mar, uns mais outros menos, viciados em adrenalina
e o cabo Horn é o maior traficante de adrenalina
do planeta
é só por isso que voltamos sempre ao Horn
todos fissurados numa overdose de adrenalina da boa que só o Cabo Horn sabe nos preparar
metade por conta dos seus perigos reais, metade por conta da legenda que potencializa o pavor
“Joshua” endoideceu
vejam! tá com um enorme osso entre os dentes
imagino impressionado os efeitos de uma capotada à toda velocidade, à noite e na vizinhança do famigerado cabo Horn.
não desejaria isso ao meu pior detrator.
nem mesmo àqueles que alardearam que eu naufraguei quando, na realidade, apenas virei pela segunda vez.
duas vezes em cinco anos de aventuras
velejando freqüentemente numa canoa mais instável que três mulheres juntas e em plena TPM.
as rajadas de vento estão beirando a força 9
preciso tomar um decisão
capear, aquartelar, orçar, arriar todas às velas
sei lá, só sei que preciso tomar
uma providência
antes que seja tarde demais
porque o tempo não para
não não não para, não para nem volta atrás
acontecido um fato, nem deus desfaz o feito
 o futuro só a deus pertence
e o passado nem deus revoga
por isso a grande filosofia, a maior de todas as filosofias dessa vida é
“melhor previr que remediar”
capear, é isso, acho que... vou capear!   
capear é a melhor solução quando não sabemos mais o que fazer.
vamos capear amigo “Joshua”?

estrofe 9

o velho Horn não gosta de ser dobrando facilmente...
opõe sempre uma dúzia de obstáculos aos loucos marujos que se aventuram nestas paragens inóspitas.
 > ondas grandes
 >> ondas de arrebentação em pleno mar
>>> ondas piramidais, ou seja, ondas surpreendentemente grandes, resultado do somatórios de duas, de três ondas distintas, vindas de diferentes direções
>>>> frio, muito frio no mar e no ar
>>>>> ventos fortes que aumentam de intensidade de repente e sem nenhum sinal prévio, que nos alerte sobre o perigo iminente
>>>> icebergs flutuantes e growlers ( sendo este obstáculo o mais raro de todos, mas que tende a crescer à medida que nós, os metaorangotangos vagabundos, glória e perdição do planeta Terra, promovemos o aquecimento global )
>>> névoas secas ou úmidas
>> nevoeiros
> chuva
>> neve
>>> granizo
>>>> tempestades violentíssimas em que todos os itens já citados ocorrem simultaneamente.
o Horn, colegas velejadores, o velho Horn não o é o tempo todo...
mas eventualmente o cabo Horn é o inferno!
talvez seja o vestíbulo do inferno
é ao largo do Horn que circula o demônio Caronte
“ o demônio Caronte, o olhar em brasa
vai dando com a pá do remo em alguns
 que o medo atrasa”

Dante Alighieri

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