MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN
estrofe 13
as velas com todas as forras de rizes recortam-se contra o céu claro de sua mais alta latitude
as ondas pontudas mais se assemelham a dentes de tubarão esfomeado
ouço o ronco surdo do casco de “Joshua” que luta com a mar
a mar está toda branca
o céu está todo branco
meus cabelos estão ficando brancos
sinceramente não sei onde estou
corremos muito tempo além das fronteiras do demais “Joshua” mais eu
nunca senti meu barco tão poderoso
nunca ele tinha-me dado tantas emoções fortes
há mais de 36 horas que não tiro meu impermeável
a gola do meu pulôver está ensopada d’água gelada
minhas calças idem
meu jantar foram duas latas de sardinha engolidas às pressas
mas não me sinto cansado não...
sinto-me bem obrigado
melhor que nunca
as recordações da minha infância envolvem-me
semelhantes a vagas quentes...
as longas corridas descalço nas florestas da Indochina
atrás do mel selvagem
as picadas das abelhas
as caçadas com bodoques
a mar verde-esmeralda- transparente do golfo de Sião
vista de bordo da
minha rústica canoa à vela
querem saber o que é um barco à vela, amigos?
uma não-máquina de pensar!
não-máquina porque pra mim toda máquina tem de ter motor pra ser considerada máquina
motor, essa invenção horrorosa
que custa caro
que cheira mal
que polui a água
que polui o ar
que polui o som
que é pesada demais
e que quando a gente mais precisa dela, pifa
e pensar que tem tanta gente que não vive sem motor
estou dando uma volta ao mundo sem motor a bordo
acreditam?
sabem o que acontece?
sem o maldito barulho do motor a gente consegue pensar
não tenho feito outra coisa senão pensar
recordar-me do passado
ler e escrever
desde que comecei esta alucinante viagem
é estranho como este céu do cabo Horn
se parece com o da Indochina
ohhhh! pena que vocês não viram
nem vão ver mais
nem vão acreditar se eu contar
mas um pálido arco-íris acaba de se formar
qual efêmero diadema
por sobre o gurupés de “Joshua”
à luz da lua
já tinham visto um arco-íris lunar amigos?
ha ha ha agora fui obrigado a rir
“Joshua” levou um tremendo caldo de uma onda
depois sacudiu-se todo lembrando um cão
livrando-se da água que lhe encharcava o pelo...
não imaginam o quanto amo meu barquinho
lépido e arisco ele salta de vaga em vaga
mais parecido com um monotipo de 4 metros
do que com um ketch de aço de 16 metros e 13 toneladas
corajoso "Joshua" segue em frente
sempre em frente rumo ao terrível Horn
indiferente aos grandes perigos que corre
teríamos já dobrado o cabo Horn amigo “Joshua”?
como sabe-lo se ainda não inventaram o GPS?
estamos em 1968 amigos, não se esqueçam
temos GPS ainda não
no momento astros, estrelas e lua não nos faltam
mas cadê o horizonte?
não, não eu saberia...
ainda não dobramos o Horn
mais tarde
um pouco mais tarde
temos de esperar
marujos e mulheres grávidas vivem de esperar
o vento amainou
vou acender o fogareiro e fazer um café?
servidos?
estrofe 14
o vento refrescou de novo
o ar está gelado
fico à escuta
a razão me cochicha ao ouvido
- reduza os panos Bernard
- avance mais devagar Bernard
- cesse de surfar nas barbas do Horn em cima desta sua pranchinha de latão chamada “Joshua” Bernard
quero, preciso obedecer à voz da razão
mas com que forças contrariar um inconsciente tão temerário quanto o meu?
já naufraguei duas vezes por culpa do meu inconsciente amigos
vocês todos sabem disso
todo mundo sabe disso
voltar ao pé do mastro
é imperioso voltar ao pé do mastro
voltar asinha ao pé do mastro pra arriar a vela grande
frear meu barco
aquartelar meu juízo
se é que ainda o possuo
o vento amainou
a velocidade diminuiu
tenho a impressão de acordar de um sonho
há três anos atrás, nesta mesmas paragens
a mar se acalmava logo assim que o vento diminuía
agora não sei
seria preciso ter dobrado dez vezes o Horn
pra saber o que vai acontecer desta feita
subo a farejar a noite
o vento rondou e caiu pra força 6
as ondas não são mais dentes de tubarão esfomeados que se recortam contra o céu
mas sim belas dunas prateadas...
não há mais golfinhos
nem gaivotas
nem fantasmas
reconquistei o controle da situação
mas não há meio de ficar absolutamente tranqüilo não
porque?
porque na mar tudo é relativo e muda o tempo todo
em especial nas imediações do cabo Horn
tudo está bem
de repente tudo está mal
tudo está sob controle
de repente tudo desembesta
subo pra olhar
olhar a mar produz um efeito hipnótico
que é mais forte à noite que de dia
olha-se
olha-se
olha-se infinitamente pro mar imenso
a mar voltou a crescer
amaino a mezena pra limitar a extensão das perigosas surfadas de “Joshua”
pergunto-me como pude me embriagar tanto
com a velocidade há uma hora atrás
como pude levar tão longe minha sede de adrenalina
olho pra esta mar formidável
respiro os borrifos
e sinto desabrochar aqui
no vento e no espaço
algo que necessita da imensidade do universo
para realizar-se.
um meteoro!
uma idéia!
atravessou a mil por hora o céu do meu cérebro
é sempre em plena mar e nos momentos mais decisivos que me ocorrem minha melhores idéias
Victor Hugo escreveu que
uma idéia é um meteoro
amigo leitor meu cérebro acaba de conceber
um meteoro
uma idéia
uma idéia meteórica
a mais louca das idéias que já me deu na telha
não consigo acreditar que pensei isso
e muito menos que farei isso
se eu fizer isso que acabei de pensar
o mundo inteiro vai me chamar de louco
num primeiro momento
mas depois
mais tarde
daqui a 10, 20, 30, 40, 100 anos talvez
ainda falarão de Bernard Moitessier
e foi dobrando o cabo Horn por volta da meia noite
do dia de hoje
que essa idéia formidável me ocorreu
estou feliz
confesso que estou feliz e cansado
acho que vou dormir
dormir pra melhor sonhar com minha
idéia meteórica
depois de conceber uma idéia como esta
não tenho mais medo de nada
nem do cabo Horn
nem do que Victor Hugo escreveu
nos TRABALHADORES DA MAR
sobre a mar e o vento
vou dormir
posso dormir amigo “Joshua”?
posso?
até mais
vou dormir
talvez morrer...
Não importa...
Mas se eu não morrer logo
Talvez ensine ao resto do mundo o significado da palavra
Aventura.
Aventura de verdade, é a que realizarei, se realizar...
Psssiuuuu, coisas futuras...
Fica só entre nós amigo.
Boa noite “Joshua”!