MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN
estrofe 4
todo o buquê fulgura incandescente, exuberante...
macacos me mordam!
Deus ateou fogo no céu
diante dos meus olhos extasiados
todo o firmamento flameja, reverberando com a intensidade e a doçura do fogo
por cima do esbranquiçado clarão
reflexo das geleiras da Antártida mais ao sul.
uma grossa e escura cortina de estratos começa a fechar-se
eclipsam a lua
escondem as estrelas
apagam os raios
por favor, não!
roubam-me enfim a primeira e talvez última aurora boreal da minha pequenina grande vida
o espetáculo acabou
pena
quanto tempo levou?
sessenta segundos ou minutos?
meu relógio diz minutos, meu cérebro de macróbio humano diz segundos
o espetáculo acabou, mas o suspense continua
pois que o temível cabo Horn continua pela bochecha de bombordo do meu intrépido “Joshua”
a noite parece uma lagoa escura arrodeada de areia branca
a lua cheia nos espreita de quando em quando
por trás das nuvens de cerração
através das eventuais frestas da espessa parede de estratos
a mar arqueja prateada, brilhante
toda coberta de lâminas verdes fluorescentes
Netuna, suponho, quer me dizer algo, mas a névoa abafa-lhe a voz
a bombordo escondida nas trevas está a Terra do Fogo
a boreste, igualmente invisível e muito mais distante a Terra de Graham com suas eternas geleiras
pela proa, a ilha do Horn e seu longo colar de ilhotas e pedras rasas que já destroçaram o casco de centenas de barcos maiores que “Joshua”
pensar nisso aumenta, duplica, triplica meu medo
fazendo circular em torrentes a poderosa adrenalina
em meu sangue quente
a sensação é má e boa
o cabo Horn é o maior traficante de adrenalina
do planeta
e é só por isso, que nós, aventureiros, não sossegamos enquanto não passamos por aqui
todos fissurados numa overdose de adrenalina da boa!
toda droga em excesso mata
tudo em excesso mata
a morte sabe disso e freqüenta, desde sempre, os arredores...
“é a morte, essa carnívora assanhada
serpente má de língua envenenada
que tudo que acha no caminho come
faminta e atra mulher que a primeiro de janeiro
sai para assassinar o mundo inteiro
e o mundo inteiro não lhe mata a fome”
Augusto dos Anjos
estrofe 5
começa a ventar mais forte
e a mar a bramir mais alto
as ondas crescem de tamanho, grávidas do alto-fundo do cabo Horn
o barômetro caiu
e o vento sopra com força 7
“Joshua” destemido como sempre
segue em frente ziguezagueando
por cima da mar, cada vez mais grossa e irada
sob a mestra com duas
e a mezena com quatro forras de rizes
se o céu não estivesse encoberto
eu veria o horizonte todo branco mais ao sul
reflexos dos raios de sol
nas geleiras...
um cego que perdesse a bengala
caminhando pela primeira vez numa rua
mal calçada de um estranho bairro
da esquisita periferia de Cingapura
não caminharia mais inseguro que eu
que mal e mal consegui medir
a altura do sol esta manhã
entre uma pancada de chuva e outra
lá vamos nós, “Joshua” e eu,
tateando entre Diego Ramirez e o Horn.
a prudência me cochicha ao ouvido
- reduza mais a área vélica de “Joshua” Bernard...
olha que seguro morreu de velho...
minha vontade de passar para o outro lado
e deixar o Horn pela popa é tão grande
que não dou ouvidos à prudência.
mas faz duas horas que estou de plantão ao pé do mastro
atado à linha de vida por dois seguros mosquetões
pronto pra arriar a vela grande a qualquer instante
mas sempre postergando esta sensata decisão
“Joshua” avança veloz, além do bastante
e muito próximo do demais...
o vento aumentou para força 8
percebo até que ponto o medo é excitante
medo sempre temperado com altas doses de adrenalina
o que o torna ainda mais saboroso...
o frio é intenso, mas esta noite sinto vontade
de tirar minhas grossas luvas, meu capuz e minhas botas
quero por minhas mãos, cabeça e pés nus em contato com a atmosfera...
pra quê?
pra melhor sentir, apalpar, sorver os mistérios que circundam o cabo Horn durante a noite...
as vagas tornam-se imensas, monstruosas mesmo...
uma vagaria assim tão alta
é prenuncio certo de uma tempestade de oeste
para amanhã ou depois de amanhã...
precisamos nos apressar caro “Joshua”...
se não, dobraremos o Horn
entrando triunfalmente no Atlântico e minuto seguinte
seremos empurrados de volta ao Pacífico.
muito barco, maior e mais poderoso que você, amigo “Joshua”, passou dias nesse vai e vem horripilante...
algo como dançar bêbado à beira de um abismo.
estrofe 6
aqui e ali clarões grandes como balões de gás aparecem sob a mar como vaga-lumes submarinos
eu sei do que se trata
mas imagino sempre que são olhos de calamares gigantes
se tivesse um arpão comigo tentaria de novo arpoá-los em vão
como o fiz diversas vezes durante a adolescência
em breve será meia-noite
continuo sem sono
velando de pé ao pé do mastro que estala e estremece ao final de cada surfada que “Joshua” dá
em sua corrida desenfreada rumo ao mais terrível dos cabos...
estou me referindo ao mastro de vante
que sofre a maior pressão das velas
mastro que fiz com um poste de telégrafo
por falta de capital pra comprar um mastro de verdade
seus mastros são postes de telégrafos amigo “Joshua”
tenha vergonha não meu irmão
que mais vale um poste de telégrafo que resista
que um mastro de fibra de carbono que se parta
nós vamos passar, mas daqui a 40 anos Jean Le Cam e Vincent Riou vão dançar
cada vez que o mastro de vante estala e estremece meu coração também estala e estremece
há uma ligação virtual entre o mastro de vante de “Joshua”
e o meu velho e forte coração
marujo de alta mar que pretende dobrar o cabo Horn precisa ter coração forte amigos
coração de cabo pré-estirado do bom
se não arrebenta num desses terríveis estalos do mastro de vante
o vento refrescou ainda mais
dei mais um rizo na vela grande
e me pergunto se não deveria também rizar a bujarrona
não, não, seria exagero
só se riza a bujarrona quando o diabo está solto
ainda não é o caso
dá pra esperar um pouco mais
esperemos que o diabo saia da sua filial do inferno no alto do cabo Horn
louco pra roubar a alma do pobre marujo que decidiu dobrá-lo em solitário e à meia noite
esperar... esperar... temos de esperar
temos sempre de esperar nós marinheiros de alta mar
esperar pelo bom momento pra fazer a boa manobra
nem antes nem depois
momento exato
basta uma falha, um senão, uma precipitação e pimba! mastro n’água
e mastro n’água no cabo Horn pode significar barco nas pedras do cabo Horn
o famoso clarão das altas latitudes começou a surgir
o céu abriu-se a barlavento
clareando a mar, o céu e envolvendo “Joshua” numa aura metafísica
em poucos minutos as estrelas tomaram conta do céu.
brilhantes, excessivamente brilhantes...
sinal claro de ventos soprando forte
muito forte na alta atmosfera
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