MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN
estrofe 10
Em OS TRABALHADORES DO MAR
tinha decidido capear, mudei de idéia
já perceberam quantas vezes mudamos de idéia na mar, colegas marujos?
na mar somos todos mais volúveis que a mais volúvel das mulheres
na mar mudamos de idéia 10, 20, 30 vezes por dia
mudei de idéia vou seguir em frente
keep walking!
keep sailing!
pra frente é que se anda!
pra diante é que se navega!
nada de me acovardar diante do cabo Horn
o Horn detesta marinheiros covardes
leme a meio e seja o que Deus, se existir, quiser
se Deus quiser que eu soçobre no cabo Horn seja feita sua vontade
se Deus quiser que eu dobre o cabo Horn que assim seja
eu que de ordinário sou ateu
virei deísta nas vizinhanças do Horn
ha ha ha!
não contem isso pros meus detratores, viu?
é isso, não vou aquartelar
nem rizar mais as velas
nem orçar
vou seguir em frente
leme a meio
rumo 090
se eu reduzisse os panos nesse momento alguma coisa poderia romper-se
o Horn está perto demais pra que eu reduza os panos
e a força do vento é 9 na escala beaufort
as rajadas sucedem-se violentas
as vagas sucedem-se colossais
é o funil da passagem de Drake que endoida o vento
é o alto fundo que se estende ao sul do Horn que emprenha as vagas
a cada rajada, as velas inflam ao máximo
parece que vão arrebentar
e “Joshua” levanta vôo por sobre a crista das ondas
por alguns segundos a mar fica toda branca
espumante como champagne derramado
“Joshua” orça uns 10° a cada rajada e eu me agarro com toda força à adriça da grande
um idéia insana me toma de assalto
ir até o púlpito do gurupés pra melhor sorver este selvagem espetáculo
mas a coragem me falta e eu não vou além da bujarrona
turbilhões de espuma voluteam no ar a sota vento
uma espécie de efêmera neblina se forma
no canal de vento que se estende entre a buja e a grande após cada nova rajada
a lua escondeu-se, mas sua claridade traspassa as nuvens
tudo parece irreal sob essa luz fantasmagórica das altas latitudes
olho pra proa do meu outrora pacato “Joshua”
e o vejo transformado no irado Flyng Dutchman
se Richard Wagner tivesse dobrado o cabo Horn antes de compor o seu Navio Fantasma
nenhum espectador suportaria ouvir o Navio Fantasma
estrofe 11
o Navio Fantasma de Richard Wagner é impressionante
mas faltam-lhe algumas notas aterrorizantes
que ele com certeza teria acrescentado
se tivesse alguma vez dobrado o Horn
em solitário
por volta da meia-noite
com eu faço neste exato momento
existem acordes que só a experiência pode nos soprar ao ouvido
o frio está queimando as minhas orelhas
e a ansiedade a minha garganta
essa angústia só terá fim após eu ter dobrado o Horn
ajeito o capuz do meu impermeável sobre a cabeça e o rugido da mar se transforma num ronco longínquo
farejo na semi-escuridão da noite blocos de gelo e sargaços
“Joshua” quase atravessou no cavado de uma onda gigantesca
depois endireitou-se, orçou e voltou a adernar
e toma-lhe rajada
rajada atrás de rajada!
rajada após rajada
uma infinita saraivada de rajadas
“Joshua” orça e aderna mais uma vez e após um longo surf planta o gurupés no traseiro de uma imensa vaga
a vaga vinga-se do atrevimento de “Joshua” dando-lhe uma violenta bofetada de água sólida no costado
tive de me agarrar à adriça da bujarrona pra não ser carregado pela enxurrada que varreu o convés
minhas botas encheram-se de água gelada
outra vaga aproxima-se rugindo pela proa
alta, muito alta, maior que as anteriores
imensa, gigantesca, colossal
toda branca no topo e negra na base
“Joshua” começa a escalar a montanha d’água
quase na vertical
segue-se uma descida vertiginosa
penso cá com meus botões
bastaria uma descida mal sucedida de uma vaga dessas
pra que meu pássaro de asas brancas não consiga voltar à tona
e continue sua viagem numa outra dimensão
ao lado de todos os outros barcos que naufragaram tentando dobrar o cabo Horn
mas ainda não foi dessa vez
“Joshua” não é o “Flying Dutchman”
mas continua voando em direção ao Horn sob o clarão das estrelas
e a ternura um pouco distante da lua
o tempo é elástico amigos marujos
quando vogamos ao sabor de uma brisa amiga
como diz mestre Slocum
circunavegando uma bela ilha da Polinésia
o tempo passa asinha
quando nos aproximamos do cabo Horn à noite
o tempo se arrasta
tenho a impressão que faz uma semana que comecei
a dobrar o Horn
na verdade nem sei onde me encontro agora
terei já dobrado o famigerado cabo Horn?
não, creio que não
se minha navegação estimada não mente
ainda não
ainda faltam 30 longas milhas pra cruzarmos o meridiano do Horn
conhecem as coordenadas do cabo Horn amigos?
não?
tomem nota!
55°58′47″S 67°17′21″W
felizes de vocês marujos do futuro
marujos da era do GPS
marujos que conhecerão a latitude e a longitude apertando um simples botão
aqui ainda estamos em 1968 amigos
temos de empunhar o velho e bom sextante
medir a altura dos astros acima do horizonte
quando há astros e horizonte
depois mergulhar nas grossas tábuas astronômicas
e por fim encarar a longa calculeira
à luz do lampião de querosene
sabem do que é que estou falando?
agora me digam uma coisa
o que é que vocês fazem quando o GPS de vocês pifa?
Rezam?
estrofe 12
tenho a impressão que o vento aumentou de força
isto me amedronta
auando o vento se intensifica ao largo do cabo Horn
nunca se sabe que numeral ele vai atingir
30, 40, 50, 60, 80 nós?
na verdade o que me dá mais medo não é o vento
mas as vagas que o vento semeia
e o que me apavora de verdade não são
os ventos e as vagas reais
o que realmente me apavora são as terríveis frases que Victor Hugo escreveu num certo capítulo de
OS TRABALHADORES DO MAR
quer um bom conselho amigo velejador?
se você for velejar não beba
se beber não veleje
vai mais um?
se você pretende navegar não leia Victor Hugo
e se você leu Victor Hugo não navegue
confesso a vocês que o que mais me apavora
não é a mar nem o vento
é o que Victor Hugo escreveu sobre a mar e o vento
toda vez que uma nuvem escura aparece no horizonte
toda vez que a mais suave brisa começa a refrescar
as terríveis palavras de Victor Hugo me assaltam
me assediam, me molestam, me aterrorizam enfim
porque?
primeiro porque ninguém escreveu tão bem sobre a mar e o vento quanto ele
depois porque passo fatalmente a não ver o que está acontecendo, mas o que poderá acontecer
o medo mor é do porvir amigos, não do presente
em vez de correr do bicho, passo a fugir da sombra do bicho
se é que me entendem.
curiosos?
curiosos pra ler uns extratos?
dou-lhes alguns extratos!
extratos do aterrorizante capítulo
“Os Ventos do Largo” de
OS TRABALHADORES DO MAR
do grande Victor Hugo
“a cova dos ventos é mais monstruosa que a cova dos leões
os ventos combatem esmagando...
e cometem coisas horrorosas que parecem crimes
às vezes parece que cospem em deus
alternam em sentidos inversos os turbilhões
sopram hálitos frios, seguem-se hálitos quentes
a trepidação da mar anuncia um medo que tudo espera
inquietação
angustia
terror profundo das águas
subitamente o furacão como uma besta, desce a beber no oceano
a água sobe para a boca invisível
forma-se uma ventosa
incha o tumor
é a tromba!
coito medonho da vaga e da sombra
tudo é fúria e confusão
a brisa
a rajada
a borrasca
o temporal
a tempestade
a tromba!
as sete cordas da lira do vento
os ventos fazem ladrar as vagas que são seus cães...”
entenderam porque estou morrendo de medo amigos marujos?
não é do vento nem da mar
mas do que Victor Hugo escreveu sobre o vento e a mar
sinto esse medo terrível em qualquer lugar dos oceanos
Índico, Pacífico, Atlântico, Mediterrâneo
em qualquer mar
em qualquer braço de mar
que tudo é mar
mas em especial dobrando o cabo Horn em solitário
por volta da meia-noite
tenho vergonha de confessar não
qual humano não tem medo da morte?
pois que a vida é bela e uma só