domingo, 26 de fevereiro de 2012

Moitessier dobrando o cabo Horn - 4/5 - 26/2/2012




MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN

 estrofe 10

tinha decidido capear, mudei de idéia
já perceberam quantas vezes mudamos de idéia na mar, colegas marujos?
na mar somos todos mais volúveis que a mais volúvel das mulheres
na mar mudamos de idéia 10, 20, 30 vezes por dia
mudei de idéia vou seguir em frente
keep walking!
keep sailing!
pra frente é que se anda!
pra diante é que se navega!
nada de me acovardar diante do cabo Horn
o Horn detesta marinheiros covardes
leme a meio e seja o que Deus, se existir, quiser
se Deus quiser que eu soçobre no cabo Horn seja feita sua vontade
se Deus quiser que eu dobre o cabo Horn que assim seja
eu que de ordinário sou ateu
virei deísta nas vizinhanças do Horn
ha ha ha!
não contem isso pros meus detratores, viu?
é isso, não vou aquartelar
nem rizar mais as velas
nem orçar
vou seguir em frente
leme a meio
rumo 090
se eu reduzisse os panos nesse momento alguma coisa poderia romper-se
o Horn está perto demais pra que eu reduza os panos
e a força do vento é 9 na escala beaufort
as rajadas sucedem-se violentas
as vagas sucedem-se colossais
é o funil da passagem de Drake que endoida o vento
é o alto fundo que se estende ao sul do Horn que emprenha as vagas
a cada rajada, as velas inflam ao máximo
parece que vão arrebentar
e “Joshua” levanta vôo por sobre a crista das ondas
por alguns segundos a mar fica toda branca
espumante como champagne derramado
“Joshua” orça uns 10° a cada rajada e eu me agarro com toda força à adriça da grande
um idéia insana me toma de assalto
ir até o púlpito do gurupés pra melhor sorver este selvagem espetáculo
mas a coragem me falta e eu não vou além da bujarrona
turbilhões de espuma voluteam no ar a sota vento
uma espécie de efêmera neblina se forma
no canal de vento que se estende entre a buja e a grande após cada nova rajada
a lua escondeu-se, mas sua claridade traspassa as nuvens
tudo parece irreal sob essa luz fantasmagórica das altas latitudes
olho pra proa do meu outrora pacato “Joshua”
e o vejo transformado no irado Flyng Dutchman
se Richard Wagner tivesse dobrado o cabo Horn antes de compor o seu Navio Fantasma
nenhum espectador suportaria ouvir o Navio Fantasma


estrofe 11
 
o Navio Fantasma de Richard Wagner é impressionante
 mas faltam-lhe algumas notas aterrorizantes
que ele com certeza teria acrescentado
se tivesse alguma vez dobrado o Horn
em solitário
por volta da meia-noite
com eu faço neste exato momento
existem acordes que só a experiência pode nos soprar ao ouvido
o frio está queimando as minhas orelhas
e a ansiedade a minha garganta
essa angústia só terá fim após eu ter dobrado o Horn
ajeito o capuz do meu impermeável sobre a cabeça e o rugido da mar se transforma num ronco longínquo
farejo na semi-escuridão da noite blocos de gelo e sargaços
“Joshua” quase atravessou no cavado de uma onda gigantesca
depois endireitou-se, orçou e voltou a adernar
e toma-lhe rajada
 rajada atrás de rajada!
rajada após rajada
uma infinita saraivada de rajadas
“Joshua” orça e aderna mais uma vez e após um longo surf planta o gurupés no traseiro de uma imensa vaga
a vaga vinga-se do atrevimento de “Joshua” dando-lhe uma violenta bofetada de água sólida no costado
tive de me agarrar à adriça da bujarrona pra não ser carregado pela enxurrada que varreu o convés
minhas botas encheram-se de água  gelada
outra vaga aproxima-se rugindo pela proa
alta, muito alta, maior que as anteriores
imensa, gigantesca, colossal
toda branca no topo e negra na base
“Joshua” começa a escalar a montanha d’água
quase na vertical
segue-se uma descida vertiginosa
penso cá com meus botões
bastaria uma descida mal sucedida de uma vaga dessas
pra que meu pássaro de asas brancas não consiga voltar à tona
e continue sua viagem numa outra dimensão
ao lado de todos os outros barcos que naufragaram tentando dobrar o cabo Horn
mas ainda não foi dessa vez
“Joshua” não é o “Flying Dutchman”
 mas continua voando em direção ao Horn sob o clarão das estrelas
e a ternura um pouco distante da lua
o tempo é elástico amigos marujos
quando vogamos ao sabor de uma brisa amiga
como diz mestre Slocum
circunavegando uma bela ilha da Polinésia
o tempo passa asinha
quando nos aproximamos do cabo Horn à noite
o tempo se arrasta
tenho a impressão que faz uma semana que comecei
a dobrar o Horn
na verdade nem sei onde me encontro agora
terei já dobrado o famigerado cabo Horn?
não, creio que não
se minha navegação estimada não mente
ainda não
ainda faltam 30 longas milhas pra cruzarmos o meridiano do Horn
conhecem as coordenadas do cabo Horn amigos?
não?
tomem nota!
55°58′47″S 67°17′21″W
felizes de vocês marujos do futuro
marujos da era do GPS
marujos que conhecerão a latitude e a longitude apertando um simples botão
aqui ainda estamos em 1968 amigos
temos de empunhar o velho e bom sextante
medir a altura dos astros acima do horizonte
quando há astros e horizonte
depois mergulhar nas grossas tábuas astronômicas
e por fim encarar a longa calculeira
à luz do lampião de querosene
sabem do que é que estou falando?
agora me digam uma coisa
o que é que vocês fazem quando o GPS de vocês pifa?
Rezam?


estrofe 12

tenho a impressão que o vento aumentou de força
isto me amedronta
auando o vento se intensifica ao largo do cabo Horn
nunca se sabe que numeral ele vai atingir
 30, 40, 50, 60, 80 nós?
na verdade o que me dá mais medo não é o vento
mas as vagas que o vento semeia
e o que me apavora de verdade não são
os ventos e as vagas reais
o que realmente me apavora são as terríveis frases que Victor Hugo escreveu num certo capítulo de
OS TRABALHADORES DO MAR
quer um bom conselho amigo velejador?
se você for velejar não beba
se beber não veleje
vai mais um?
se você pretende navegar não leia Victor Hugo
e se você leu Victor Hugo não navegue
confesso a vocês que o que mais me apavora
não é a mar nem o vento
é o que Victor Hugo escreveu sobre a mar e o vento
Em OS TRABALHADORES DO MAR
toda vez que uma nuvem escura aparece no horizonte
toda vez que a mais suave brisa começa a refrescar
as terríveis palavras de Victor Hugo me assaltam
me assediam, me molestam, me aterrorizam enfim
porque?
primeiro porque ninguém escreveu tão bem sobre a mar e o vento quanto ele
depois porque passo fatalmente a não ver o que está acontecendo, mas o que poderá acontecer
o medo mor é do porvir amigos, não do presente
em vez de correr do bicho, passo a fugir da sombra do bicho
se é que me entendem.
curiosos?
curiosos pra ler uns extratos?
dou-lhes alguns extratos!
extratos do aterrorizante capítulo
“Os Ventos do Largo” de
OS TRABALHADORES DO MAR
do grande Victor Hugo
“a cova dos ventos é mais monstruosa que a cova dos leões
os ventos combatem esmagando...
e cometem coisas horrorosas que parecem crimes
às vezes parece que cospem em deus
alternam em sentidos inversos os turbilhões
sopram hálitos frios, seguem-se hálitos quentes
a trepidação da mar anuncia um medo que tudo espera
inquietação
angustia
terror profundo das águas
subitamente o furacão como uma besta, desce a beber no oceano
a água sobe para a boca invisível
forma-se uma ventosa
incha o tumor
é a tromba!
coito medonho da vaga e da sombra
tudo é fúria e confusão
a brisa
a rajada
a borrasca
o temporal
a tempestade
a tromba!
as sete cordas da lira do vento
os ventos fazem ladrar as vagas que são seus cães...”
entenderam porque estou morrendo de medo amigos marujos?
não é do vento nem da mar
mas do que Victor Hugo escreveu sobre o vento e a mar
sinto esse medo terrível em qualquer lugar dos oceanos
Índico, Pacífico, Atlântico, Mediterrâneo
em qualquer mar
em qualquer braço de mar
que tudo é mar
mas em especial dobrando o cabo Horn em solitário
 por volta da meia-noite
tenho vergonha de confessar não
qual humano não tem medo da morte?
pois que a vida é bela e uma só

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Moitessier dobrando o cabo Horn - 3/5 - 19/2/2012



MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN

 estrofe 7


nunca vi o cruzeiro do sul tão alto nem tão nítido
vejo inclusive as duas nebulosas
prolongamento luminoso dos seus braços
à bombordo flutua a lua toda cheia
a boreste resplandece o clarão das geleiras antárticas
as bolas de fogo que já mencionei
avistam-se agora que a cerração se dissipou
a mais de cinqüenta braças de distância
são aglomerados de plâncton me diz meu consciente
são olhos de carnívoras lulas gigantes me sussurra minha imaginação febril
mas porque será que possuem tamanha claridade?
porque será que se apagam tão de repente?
mistérios, mistérios profundos
a mar é assim, sempre cheia desses mistérios insondáveis e profundos
que crescem de dimensão à noite
ora nos encantando, ora nos apavorando
é por isso que todos nós, marujos de alta mar
temos essa expressão mista no olhar
mescla de coragem, medo e encantamento
quem ama mulher bonita, inteligente, impetuosa e fatalmente infiel
tem essa mesma expressão desvairada e tensa de marujo de alta mar no olhar
basta olhar pro Otello da Desdêmona
basta olhar pro Don José da Carmem
basta olhar pro Bentinho da Capitú
todos três, Otello, Don José e Bentinho tem cara de marujo de alta mar, sem jamais ter afrontado a mar
minto, minto o mouro de Veneza conhecia  bem a mar
e Desdêmona não era, nunca foi infiel
pobre Otello atravessou a mar e afogou-se  na lagoa escura do ciúme
Machado, o grande Machado escreveu que Capitu tinha olhos de ressaca
e foi numa ressaca que Escobar perdeu a vida afogado
as vagas tornaram-se altas
ainda mais altas do que devem na realidade ser
pois que o clarão secante do luar realça-lhes o volume e a altura
eu deveria baixar o que sobrou da vela grande e tirar a bujarrona de cena
essas surfadas fantásticas que “Joshua” vem realizando na crista das ondas podem resultar em desastre


estrofe 8


são lindas
são emocionantes
são excitantes
mas como tudo que é lindo, emocionante e excitante são perigosas, pra não dizer perigosíssimas
aposto que a velocidade limite do casco já foi diversas vezes ultrapassada.
essas imensas vagas geladas mais parecem
labaredas de incêndio
e eu estou brincando com fogo, amigos
expondo-me demasiadamente ao perigo
sorvendo overdoses de adrenalina
eis-me viciado na droga mais alucinante do mundo
não é a cocaína, não é a heroína, não é a maconha, nem tampouco a nicotina
é a poderosa ADRENALINA
somos todos, nós aventureiros, nós marujos de alta mar, uns mais outros menos, viciados em adrenalina
e o cabo Horn é o maior traficante de adrenalina
do planeta
é só por isso que voltamos sempre ao Horn
todos fissurados numa overdose de adrenalina da boa que só o Cabo Horn sabe nos preparar
metade por conta dos seus perigos reais, metade por conta da legenda que potencializa o pavor
“Joshua” endoideceu
vejam! tá com um enorme osso entre os dentes
imagino impressionado os efeitos de uma capotada à toda velocidade, à noite e na vizinhança do famigerado cabo Horn.
não desejaria isso ao meu pior detrator.
nem mesmo àqueles que alardearam que eu naufraguei quando, na realidade, apenas virei pela segunda vez.
duas vezes em cinco anos de aventuras
velejando freqüentemente numa canoa mais instável que três mulheres juntas e em plena TPM.
as rajadas de vento estão beirando a força 9
preciso tomar um decisão
capear, aquartelar, orçar, arriar todas às velas
sei lá, só sei que preciso tomar
uma providência
antes que seja tarde demais
porque o tempo não para
não não não para, não para nem volta atrás
acontecido um fato, nem deus desfaz o feito
 o futuro só a deus pertence
e o passado nem deus revoga
por isso a grande filosofia, a maior de todas as filosofias dessa vida é
“melhor previr que remediar”
capear, é isso, acho que... vou capear!   
capear é a melhor solução quando não sabemos mais o que fazer.
vamos capear amigo “Joshua”?

estrofe 9

o velho Horn não gosta de ser dobrando facilmente...
opõe sempre uma dúzia de obstáculos aos loucos marujos que se aventuram nestas paragens inóspitas.
 > ondas grandes
 >> ondas de arrebentação em pleno mar
>>> ondas piramidais, ou seja, ondas surpreendentemente grandes, resultado do somatórios de duas, de três ondas distintas, vindas de diferentes direções
>>>> frio, muito frio no mar e no ar
>>>>> ventos fortes que aumentam de intensidade de repente e sem nenhum sinal prévio, que nos alerte sobre o perigo iminente
>>>> icebergs flutuantes e growlers ( sendo este obstáculo o mais raro de todos, mas que tende a crescer à medida que nós, os metaorangotangos vagabundos, glória e perdição do planeta Terra, promovemos o aquecimento global )
>>> névoas secas ou úmidas
>> nevoeiros
> chuva
>> neve
>>> granizo
>>>> tempestades violentíssimas em que todos os itens já citados ocorrem simultaneamente.
o Horn, colegas velejadores, o velho Horn não o é o tempo todo...
mas eventualmente o cabo Horn é o inferno!
talvez seja o vestíbulo do inferno
é ao largo do Horn que circula o demônio Caronte
“ o demônio Caronte, o olhar em brasa
vai dando com a pá do remo em alguns
 que o medo atrasa”

Dante Alighieri

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Moitessier dobrando o cabo Horn - 2/5 - 12/2/2012




MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN

 estrofe 4

todo o buquê fulgura incandescente, exuberante...
macacos me mordam!
Deus ateou fogo no céu
diante dos meus olhos extasiados
todo o firmamento flameja, reverberando com a intensidade e a doçura do fogo
por cima do esbranquiçado clarão
reflexo das geleiras da Antártida mais ao sul.
uma grossa e escura cortina de estratos começa a fechar-se
eclipsam a lua
escondem as estrelas
apagam os raios
por favor, não!
roubam-me enfim a primeira e talvez última aurora boreal da minha pequenina grande vida
o espetáculo acabou
pena
quanto tempo levou?
sessenta segundos ou minutos?
meu relógio diz minutos, meu cérebro de macróbio humano diz segundos
o espetáculo acabou, mas o suspense continua
pois que o temível cabo Horn continua pela bochecha de bombordo do meu intrépido “Joshua”
a noite parece uma lagoa escura arrodeada de areia branca
a lua cheia nos espreita de quando em quando
por trás das nuvens de cerração
através das eventuais frestas da espessa parede de estratos
a mar arqueja prateada, brilhante
toda coberta de lâminas verdes fluorescentes
Netuna, suponho, quer me dizer algo, mas a névoa abafa-lhe a voz
a bombordo escondida nas trevas está a Terra do Fogo
a boreste, igualmente invisível e muito mais distante a Terra de Graham com suas eternas geleiras
pela proa, a ilha do Horn e seu longo colar de ilhotas e pedras rasas que já destroçaram o casco de centenas de barcos maiores que “Joshua”
pensar nisso aumenta, duplica, triplica meu medo
fazendo circular em torrentes a poderosa adrenalina
em meu sangue quente
a sensação é má e boa
o cabo Horn é o maior traficante de adrenalina
do planeta
e é só por isso, que nós, aventureiros, não sossegamos enquanto não passamos por aqui
todos fissurados numa overdose de adrenalina da boa!
toda droga em excesso mata
tudo em excesso mata
a morte sabe disso e freqüenta, desde sempre, os arredores...
“é a morte, essa carnívora assanhada
serpente má de língua envenenada
que tudo que acha no caminho come
faminta e atra mulher que a primeiro de janeiro
sai para assassinar o mundo inteiro
e o mundo inteiro não lhe mata a fome”

Augusto dos Anjos


estrofe 5

começa a ventar mais forte
e a mar a bramir mais alto
as ondas crescem de tamanho, grávidas do alto-fundo do cabo Horn
o barômetro caiu
e o vento sopra com força 7
“Joshua” destemido como sempre
segue em frente ziguezagueando
por cima da mar, cada vez mais grossa e irada
sob a mestra com duas
e a mezena com quatro forras de rizes
se o céu não estivesse encoberto
eu veria o horizonte todo branco mais ao sul 
reflexos dos raios de sol
nas geleiras...
um cego que perdesse a bengala
caminhando pela primeira vez numa rua
mal calçada de um estranho bairro
da esquisita periferia de Cingapura
não caminharia mais inseguro que eu
que mal e mal consegui medir
a altura do sol esta manhã
entre uma pancada de chuva e outra
lá vamos nós, “Joshua” e eu,
tateando entre Diego Ramirez e o Horn.
a prudência me cochicha ao ouvido
- reduza mais a área vélica de “Joshua” Bernard...
olha que seguro morreu de velho...
minha vontade de passar para o outro lado
e deixar o Horn pela popa é tão grande
que não dou ouvidos à prudência.
mas faz duas horas que estou de plantão ao pé do mastro
atado à linha de vida por dois seguros mosquetões
pronto pra arriar a vela grande a qualquer instante
mas sempre postergando esta sensata decisão
“Joshua” avança veloz, além do bastante
e muito próximo do demais...
o vento aumentou para força 8
percebo até que ponto o medo é excitante
medo sempre temperado com altas doses de adrenalina
o que o torna ainda mais saboroso...
o frio é intenso, mas esta noite sinto vontade
de tirar minhas grossas luvas, meu capuz e minhas botas
quero por minhas mãos, cabeça e pés nus em contato com a atmosfera...
pra quê?
pra melhor sentir, apalpar, sorver os mistérios que circundam o cabo Horn durante a noite...
as vagas tornam-se imensas, monstruosas mesmo...
uma vagaria assim tão alta
é prenuncio certo de uma tempestade de oeste
 para amanhã ou depois de amanhã...
precisamos nos apressar caro “Joshua”...
se não, dobraremos o Horn
entrando triunfalmente no Atlântico e minuto seguinte
seremos empurrados de volta ao Pacífico.
muito barco, maior e mais poderoso que você, amigo “Joshua”, passou dias nesse vai e vem horripilante...
algo como dançar bêbado à beira de um abismo.

estrofe 6

aqui e ali clarões grandes como balões de gás aparecem sob a mar como vaga-lumes submarinos
eu sei do que se trata
mas imagino sempre que são olhos de calamares gigantes
se tivesse um arpão comigo tentaria de novo arpoá-los em vão
como o fiz diversas vezes durante a adolescência
em breve será meia-noite
continuo sem sono
velando de pé ao pé do mastro que estala e estremece ao final de cada surfada que “Joshua” dá
em sua corrida desenfreada rumo ao mais terrível dos cabos...
estou me referindo ao mastro de vante
que sofre a maior pressão das velas
mastro que fiz com um poste de telégrafo
por falta de capital pra comprar um mastro de verdade
seus mastros são postes de telégrafos amigo “Joshua”
tenha vergonha não meu irmão
que mais vale um poste de telégrafo que resista
que um mastro de fibra de carbono que se parta
nós vamos passar, mas daqui a 40 anos Jean Le Cam e Vincent Riou vão dançar
cada vez que o mastro de vante estala e estremece meu coração também estala e estremece
há uma ligação virtual entre o mastro de vante de “Joshua”
e o meu velho e forte coração
marujo de alta mar que pretende dobrar o cabo Horn precisa ter coração forte amigos
coração de cabo pré-estirado do bom
se não arrebenta num desses terríveis estalos do mastro de vante 
o vento refrescou ainda mais
dei mais um rizo na vela grande
e me pergunto se não deveria também rizar a bujarrona
não, não, seria exagero
só se riza a bujarrona quando o diabo está solto
ainda não é o caso
dá pra esperar um pouco mais
esperemos que o diabo saia da sua filial do inferno no alto do cabo Horn
louco pra roubar a alma do pobre marujo que decidiu dobrá-lo em solitário e à meia noite
esperar... esperar... temos de esperar
temos sempre de esperar nós marinheiros de alta mar
esperar pelo bom momento pra fazer a boa manobra
nem antes nem depois
momento exato
basta uma falha, um senão, uma precipitação e pimba! mastro n’água
e mastro n’água no cabo Horn pode significar barco nas pedras do cabo Horn 
o famoso clarão das altas latitudes começou a surgir
o céu abriu-se a barlavento
clareando a mar, o céu e envolvendo “Joshua” numa aura metafísica
em poucos minutos as estrelas tomaram conta do céu.
brilhantes, excessivamente brilhantes...
sinal claro de ventos soprando forte
muito forte na alta atmosfera

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Moitessier dobrando o cabo Horn - 1/5 - 5/2/2012



Philippe Jeantot, o grande Philippe Jeantot, que venceu duas BOC CHALLENGE ( atual Velux 5 Oceans Race ) consecutivas, declarou no seu livro “Trois océans pour une victoire” que leu duas vezes consecutivas e na mesma noite, eu escrevi na mesma noite, “La longue route” de Bernard Moitessier. Isso aos quinze anos de idade. Isso antes de aprender a velejar. A amiga velejadora já leu, por acaso, um dos ótimos livros do Amyr Klink, duas vezes na mesma noite?
Eu andava curioso pra saber o que aconteceria de extraordinário comigo, ao ler este famoso livro-fetiche, que já mudou a vida de muito marujo pelo o mundo afora . Pois bem, li enfim o livro durante esta última aventura a bordo da “Estrela d’Alva” e aconteceram três coisas extraordinárias comigo:

1 – pela primeira vez li um apêndice com prazer, eu que detesto ler, quando leio, apêndices, prólogos, introduções ou prefácios.

2 – durante os três dias em que li o livro não consegui velejar, nem me alimentar ou dormir direito... Só pensava em ler, ler, ler e pensar a respeito... torcendo pro livro não acabar.

3 – logo após a leitura, eu que não sou poeta, comecei naturalmente a escrever o longo poema em versos brancos, digo em versos livres, MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN, utilizando metade das palavras do próprio Moitessier, traduzido pela Carmen Ballot e publicado pelas Edições Marítimas em 1984. Porque não li o livro no original, o que seria ideal? Simplesmente porque não o possuía à mão?  Em tempo, se algum poeta de verdade, desejar reescreve-lo, que o faça, por favor.


MOITESSIER DOBRANDO O CABO HORN



estrofe 1

as nuvens desfilam filamentosas pelo céu ao por do sol
filamentos nas nuvens é mal sinal
mas faz parte das coisas da mar
e é tão bonito de se ver
iço a vela de proa ao luar
é lua cheia esta noite
e ela ainda estará cheia durante a passagem pelo cabo Horn
isto se “Joshua” mais eu conseguirmos dobrar o cabo Horn...
tantos tentaram em vão
desistindo, naufragando, morrendo enfim
antes de consegui-lo
existe um grande cemitério submarino ao largo do Horn
com milhares de almas angustiadas de bravos marujos…
não sinto sono
o Horn está tão perto…
apesar de imensa a mar respira calmamente
um raio de luar reflete-se no topo de uma nuvem
de raio transforma-se em facho de luz
que sobe reto, vertical, sobrenatural furando o zênite
- céus, fui siderado!
- como pode a lua criar algo tão lindo?
mas o facho se alarga e torna-se fosforescente...
dir-se-ia...
o que meu Deus?!
um canhão de luz a disparar estrelas?
sei lá! quando a magia é grande demais
não cabe em letras...

estrofe 2

- mas o quê que é isso meu pai do céu?!
a lua continua tirando fogo de dentro de sua nuvem-
cartola!!!
- não, não, de jeito nenhum, isso não pode ser!
passei tempo demais sozinho na mar
contraí a doença das profundezas
só pode ser...
estou delirando, variando, tresvariando
vendo coisas que não existem
a três dedos da insanidade
tudo erro, encanto, engano, miragem!
antônimo de realidade...
invenções da minha tresloucada mente...
crestada de tanto sol
curtida de tanto sal
- santo Deus, captei!
só pode ser isso!
trata-se da famosa auréola esbranquiçada do Horn.
esse fenômeno terrível de que nos fala mestre Slocum,
prenúncio sempre de fortíssimos pés de ventos!
agora que desvendei o mistério, sinto mais medo ainda
estou aterrorizado, confesso!
Édipo diante da esfinge
após ter decifrado a esfinge
não tremeu mais do que eu tremo agora
adivinhando sua futura tragédia
de repente a mar, de calma torna-se ameaçadora
as estrelas brilham agora com um clarão muito duro
a lua fez-se glacial
no zênite um segundo facho de luz eleva-se ao lado do primeiro!
e um terceiro ao lado do segundo!

estrofe 3

um, dois, três, contei uma dezena de fachos de luz distintos...
um grande buquê de luzes sobrenaturais
flutuando no espaço!
coisa incrível!
maravilha fatal que a mente esmaga...
e melhor que tudo
boa, ótima, excelente notícia
compreendi enfim do que se trata
em vez do mal agourento diadema leitoso do Cabo Horn
anunciador das piores tempestades
trata-se de uma estonteante Aurora Boreal
o que de mais lindo vi até o presente nesta minha longa odisséia pelos mares do sul
odisséia? eu disse odisséia?
odisséia é pouco, a aventura do sagaz Ulisses não ultrapassou as colunas de Hércules/Gibraltar
enquanto que eu e meu inseparável “Joshua” completaremos em breve uma volta ao mundo
digo portanto super odisséia
digo meta odisséia se me permitem, que odisséia simplesmente é pouco
mas atenção que o espetáculo ainda não acabou
novos raios de luz juntam-se à luzidia aurora
que aumenta ainda mais de tamanho e beleza a cada instante
alarga-se, espraia-se como um leque
um dos fachos de luz quase tão largo
quanto a palma da minha mão eleva-se no céu
obscurecendo as quatro estrelas do Cruzeiro do Sul
outros raios de luz fosforescente se alongam
hesitam um instante como se fossem desaparecer
mas não, ao contrário intensificam-se
ondulando em movimentos extremamente vagarosos
que lembram os longos espinhos de certos ouriços azulados no fundo da mar
quando deles se aproxima um ser vivo qualquer
quase todos fachos de luz possuem agora as cores azul e rosa.